sexta-feira

Afonso Felix de Sousa: SONETOS ELEMENTARES

...
II
...
Por Deus eu não chamei, pois Deus é Deus
e eu, nada e a consciência do meu nada.
Não respondem os homens, e a resposta
minha a mim mesmo morre no silêncio
...
de onde vim e para onde vou.
Quando olhei sepultavam já o mundo
entrevisto na infância, que entre sombras
vai cantando – e cantando afasta o medo.
...
Não retornar à antiga transparência,
no amor sulcos abrir. Sobre as sementes
no azul lançadas crescem novas árvores.
...
Ainda posso amar, sair cantando
pelas noites de lua, enquanto dormem
lagos de outrora sobre um mundo morto.
...
...
IV
...
Não mais verei nas paisagens trêmulas
da tarde ou da manhã flocos da infância.
Outros são os caminhos, alguns deles
penetrarei – já gastos os sentidos.
...
O sangue ainda a gritar, rios que rolam
sobre ausências de amadas. Mas informes
luzes indicam o caminho único,
com substâncias da aurora construído.
...
Que uma porta se abra enquanto espero.
Frágeis são as correntes que me prendem
aos que não se conformam com a ferrugem
...
do leito que os sustenta. Sobre rastos
de carne e espinhos continuo. E, claro,
antes do mar do sono, um porto acena.
...
...
V
...
Ou nunca o alcançaremos. O silêncio
aguarda as mãos – peixes enfim cansados
de se esbaterem aos sinais da aurora,
imóveis junto ao mar, na areia podre.
...
Meu sonho entre fronteiras nada vale.
Não cessaram os gestos de cimento
a esmigalharem pétalas de músicas.
A noite esconde a praia dos iguais.
...
Mas transitórios anjos me acenaram.
Meu coração é pêndulo entre os pólos.
Radiogramas do azul captei no cais.
...
Mortas manhãs renascem de elementos
geradores do canto que em mim vive.
Morto o sonho não morrem suas luzes.
...
...
VI
...
A Haroldo de Brito
...
Quantos momentos passei como este, não sabendo
se os homens estão alegres mesmo, ou se carregam
sobre os ombros o peso de todas as noites.
Embora haja vozes que dizem menos que o silêncio,
...
eu sou um só na rua. E se encontrasse
Deus de repente, sua presença me aniquilaria,
ou me tornaria leve como um cego perdido
que súbito deparasse nas trevas o seu guia.
...
Mas não lhe pediria que perdoasse os homens,
essas criaturas frágeis e sujeitas
à condição de serem levadas sem que saibam.
...
Ao encontrar os homens sinto-me fraco
para abraçá-los, mas dispo-me do que de mim existe em mim
e me torno como eles – pobre, orgulhoso, impenetrável.
...
...
XI
...
É como se dentro de mim houvesse pássaros.
Desesperos, incompreensões, descrenças, mortes,
tudo se esvai num momento, quando nascem as canções
que transbordam como hinos ao meu destino e à vida.
...
Uma vez gritei: Senhor! Mas os pássaros
haviam partido. Cheguei a sentir a pouca distância
o sono dos abismos. Tudo estaria perdido
não fosse o horror da viagem pelo mar que ignoramos.
...
Em outras auroras descansava, e era morto
o grito na lembrança suja do tempo gasto,
quando acordou meu irmão o seu eco entre brumas.
...
Agora os pássaros poderão voar, cessarem as canções,
que é seu eco uma cicatriz lembrando que o Senhor
imobilizará as mãos chagadas de descrenças.
...
...
XV
...
E Deus chamou à luz dia; e às trevas
chamou noite: o primeiro dia, feito
de elementos de mortos dias, dia
de madrugadas feito – assim nascera.
...
Embora com o corpo a debater-se
na sombra anterior, perdi-me ao canto
das aves primitivas, e boiei
entre espumas e o espírito de Deus.
...
Flores mortas brotaram e eram belas.
A terra toda se transfigurara
nessas ilhas de que só nós sabemos.
...
Cego sem céu e mar que de repente
recupera as paisagens, segui leve
como um louco cantando entre anjos.
...
...
XXI
...
Entre os seres que existem em mim, quem será
o homem sempre triste? Se ressurgisse o menino
talvez despertasse cantando, porque a natureza
teria regaço de mãe e era límpido o céu da vida.
...
Vozes do charco gritam no âmago da carne.
Frutos colhidos no silêncio deixaram este gosto selvagem
de solidão, e a cabeça que não se abaixa no jardim
mas rola para sugar o lodo da terra.
...
Repeli as mulheres por não serem bastante puras
para amar no meio da rua. Mas depois aceitei-as
como aceitei também as árvores e os animais urbanos.
...
Havia vultos ajoelhados entre máquinas, pedindo socorro
aos edifícios e postes elétricos. Aproximei-me
para tocar-lhes a carne – já não eram homens.
...

1 Comments:

Blogger Sidnei Schneider said...

De volta. Legais esses poemas. Abração.

21/2/06 01:31  

Postar um comentário

<< Home