sexta-feira

O Mel do Melhor 21: Dora Ferreira da Silva





A vigésima primeira edição de O Mel do Melhor lembra Dora Ferreira da Silva, falecida em 06 de abril recente. São poemas de Hídrias (Odysseus, 2004), prêmio Jabuti de poesia em 2005, um dos melhores livros da autora. Agora, depois de 50 anos dedicados à poesia, só o silêncio pela linguagem.

Dora Ferreira da Silva: Hídrias




ÓRFICA


Não me destruas, poema,
enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.
Não me lapidem, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.
Não caias sobre mim, que te ergo,
ferindo cordas duras,
pedindo o não-perdido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.
Não me tentes, Palavra,
além do que serás
num horizonte de vésperas.



ÁRTEMIS DE ÉFESO


A bela face parece negar o corpo informe
de múltiplos seios que nutrem a multidão de seres:
leões e morcegos, pâmpanos e flores, uvas e pinhas
adornam-lhe o pescoço. Semente longa,
o talhe corpóreo, barco de nascimento e morte.
Por que temer, se as mãos se estendem, doadoras,
não por amor de um só, mas da procissão
das formas? Retraem-se seios, quando à morte entrega
e ao húmus, plantas, homens e feras.
Mãe luminosa, mãe sombria, mistério que tudo abriga,
sê propícia ao trigo do meu canto.



DIONISOS DENDRITES


Seu olhar verde penetra a Noite entre tochas acesas
Ramos nascem de seu peito
Pés percutem a pedra enegrecida
Cantos ecoam tambores gritos mantos desatados.

Acorre o vento ao círculo demente
O vinho espuma nas taças incendiadas.
Acena o deus ao bando: Mar de alvos braços
Seios rompendo as túnicas gargantas dilatadas
E o vaticínio do tumulto à Noite -
Chegada do inverno aos lares
Fim de guerra em campos estrangeiros.

As bocas mordem colos e flancos desnudados:
À sombra mergulham faces convulsivas
Corpos se avizinham à vida fria dos valados
Trêmulas tíades presas ao peito de Dionisos trácio,
Sussura a noite e os risos de ébrios dançarinos
Mergulham no vórtice da festa consagrada.

E quando o sol o ingênuo olhar acende
Um secreto murmúrio ata num só feixe
O louro trigo nascido das encostas.



DELFOS


Aquece o Sol as clareiras do ar,
atirador de dardos súbitos.
Apolo foi chamado e usurpou em Delfos o trono das Sibilas.
Sobre a mancha de trevas pousou a trípode de luz
e mais longe soprou os vaticínios.
Muitos morreram de luz tão clara, incendiando o coração.
O ar brincou na flauta abandonada pela deusa sábia
e a música invadiu águas turbulentas:
rápidas mensagens riscou o vento nas Fedríades,
pedras róseas que se chamaram as Luminosas.
À noite, dormem no bosque templos de ossatura branca,
vértebras pousadas entre oliveiras.

Três colunas se enlaçam, sobrevivas,
na antiga ronda do templo,
fechado o círculo dos ritos funerários.

As cigarras se atrevem e os jumentos
a louvar a montanha, os vales e deuses soterrados.
A Terra acorda às vezes e suplica que tanta luz
não lhe fira a carne, queimando arbustos e a pedra crua.



KÓRE (I)


Por que sempre voltas mendiga
com braceletes de ouro e súplices olhos
de violeta?
Tuas sandálias te trazem nos andrajos
de púrpura. É primavera.
O vento se debate
nos arbustos brilhantes.
O jardim te espelha, pétalas refletem
teu sorriso
e se ofuscam.

Voltas. Sempre de novo és tu
e me assedias:
vaso antigo, cítara,
coluna entre o arvoredo.
Queres cantar comigo na relva da manhã?
Conheço tuas pálpebras, os anéis do teu cabelo,
a curva de teu colo. Sem te ouvir
sei como cantas.

Voltaste: é primavera.
O jardim se adorna

com jóias do teu cofre
pérolas frementes.

Forças, amiga, demasiado as cordas
do meu canto.
Revela-se em mim tua fragilidade.
Demora, se puderes, e com o orvalho de teus colares claros

guarda meu pranto
quando ainda mais uma vez
te fores.



KÓRE (II)


Em ilha Bela afloraste
disfarçada em rocha:
os olhos - antros de mariscos.
Olhavas o céu, narinas frementes
a boca emitindo antiga sílaba:
início do cântico a Argíon
primeiro navegante.
Virgem das profundezas
a coma em serpes
à espera de que ouça o lamento e o devolva
à amplidão do mar.

Vieste
e navegas com o tempo escultor de lápides.
Vieste
e vigias o rumo das nuvens; face gotejante
cotovelos fincados no mar
os joelhos pedras da ilha.
Teu corpo: ânfora coroada de espumas
em núpcias com o Mar.

Em câmaras fechadas
confabula-se tua derradeira história.
Que outra serás?
Que porto o teu?

Piedosamente quisera cerrar as pálpebras
desse olhar imenso
dessa busca semelhante à febre dos tesouros,
se pudesse. Mas teu olhar me contém
aos pássaros da ilha
e ao mundo adormecido de sáurios e peixes.
Entre vivos e mortos
segues à proa de navios estranhos
no múrmure mar.