sábado

Mel do Melhor 08: JOSÉ GOMES FERREIRA

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A oitava edição do Mel do Melhor apresenta José Gomes Ferreira (1900-85), mportantíssimo escritor, poeta e ficcionista português, natural do Porto, contemporâneo de Fernando Pessoa. Formou-se em Direito em 1924, tendo sido cônsul na Noruega entre 1925 e 1929. Após o seu regresso a Portugal, enveredou pela carreira jornalística. Foi colaborador de vários jornais e revistas, tais como a Presença, a Seara Nova e Gazeta Musical e de Todas as Artes. Esteve ligado ao grupo do Novo Cancioneiro, sendo geral o reconhecimento das afinidades entre a sua obra e o neo-realismo. José Gomes Ferreira foi um representante do artista social e politicamente empenhado, nas suas reacções e revoltas face aos problemas e injustiças do mundo. Mas a sua poética acusa influências tão variadas quanto a do empenhamento neo-realista, o visionarismo surrealista ou o saudosismo, numa dialéctica constante entre a irrealidade e a realidade, entre as suas tendências individualistas e a necessidade de partilhar o sofrimento dos outros.
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Os poemas que o Mel do Melhor irá apresentar fazem parte do livro Areia, de 1938, que está presente no primeiro livro das obras completas de José Gomes Ferreira, entitulada Poeta Militante.
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Não custa lembrar que o poeta brasileiro Carlos Felipe Moisés (futuramente também por aqui) escreveu um ensaio à título de doutoramento chamado Poética da Rebeldia - A trajectória militante de José Gomes Ferreira, ensaio que foi editado pela Moraes de Lisboa em 1983. Vale conferir.
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Mais sobre o vasto poeta português, cujo centenário de nascimento se deu há cinco anos, encontra-se nos sites As Tormentas, TriploV e O Canto, todos de além mar.
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Ainda mais haverá na comunidade José Gomes Ferreira no Orkut, bem como na comunidade o Mel do Melhor, também por .
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José Gomes Ferreira: AREIA: I

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Arde, arde bola de lume
a fingir de rosa numa planta
alheia às diretrizes
do mistério do estrume.
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E tu, minha voz, canta
- sem pensar nas raízes.
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José Gomes Ferreira: AREIA: VI

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Árvore seca
pendida do muro,
um dia - quem sabe? -
talvez o sol
caia do céu
para ficar preso
pelos cabelos
num dos teus ramos...
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Árvore sem fruto,
não desesperes.
O nosso destino
é um sol enforcado.
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sexta-feira

José Gomes Ferreira: AREIA: VII

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Olho para o céu imenso
com desespero comovido.
Aquela nuvem sou eu que a penso
ou nada tem sentido.
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José Gomes Ferreira: AREIA: VIII

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Com o mar,
as curvas das ondas
e o dorso dum peixe ao luar
fiz uma deusa
que criou o mar.
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(E depois deitei-me ao comprido
com o mistério resolvido.)
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quinta-feira

José Gomes Ferreira: AREIA: IX

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Volto para trás
nesta paz
de ver nos meus passos
o único sinal profundo
da tarde lilás.
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Que bom! Hoje não quero salvar o mundo.
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José Gomes Ferreira: AREIA: X

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Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
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Eis a grande raiva!
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Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.
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quarta-feira

José Gomes Ferreira: AREIA: XIII

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Alegre e duro
- na embriaguez dum prado trémulo de sol
onde a névoa salta dos relinchos dos cavalos
com flores nas crinas perfumadas das deusas...
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Alegre e duro
- num mundo que começou agora mesmo ainda sem morte a florir nas árvores
nem caveiras atiradas por um fantasma da lua para os poços.
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Alegre e duro
- na exaltação dos teus olhos - mulher que passas -
verdes como duas chicotadas na erva.
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Alegre e duro
- capaz de todos os egoísmos da solidão do sol
que só de longe ilumina os combates sagrados.
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Alegre e duro.
Sim, alegre e duro.
Inutilmente alegre e duro.
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José Gomes Ferreira: AREIA: XIV

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Acuso-te, realidade,
desta noite longa
a estender-se de estrelas
até o frio do espanto.
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Acuso-te de seres um sonho alheio
que não cabe no meu canto.
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terça-feira

José Gomes Ferreira: AREIA: XV

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Ah! só um segundo
com o mundo
de acordo comigo...
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E até os homens dormiriam nas nuvens
a ver o vento a ceifar o trigo.
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José Gomes Ferreira: AREIA: XX

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De súbito, o vento
num vôo de céu
desfez em pó
o sol da fogueira,
na estrada a arder...
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E eu parei estremecido
num esperar de mistério.
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Que vai acontecer?
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A criação na minha frente
dum novo ser
soprado de azul?
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... uma árvore diferente
com raízes de ar
e flores com asas?
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Mas não. Mas não.
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O vento, o pó e os homens
só sabem repetir
o eterno alicerce...
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A Imaginação
não torna a acender-se.
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segunda-feira

José Gomes Ferreira: AREIA: XXII

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Ó vento que trazes os gritos do mundo,
pois não vês que quero esquecê-los?
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Ah! prende-os, prende-os no pinhal
onde anda toda a noite
o Remorso que chora,
e vem depois despentear-me os cabelos
subtil e doce
com os dedos dançantes
de mulher voadora...
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José Gomes Ferreira: AREIA: XXIII

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Paisagem de muros e de cães
a ladrarem pelo céu
- propriedade azul
de todos os desgraçados.
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Árvores escondidas
que o vento desenha em perfumes
no silêncio do sol.
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Sebes de silvas e piteiras
ainda com o ódio primitivo
de quando o mundo
era um planeta de florestas e de pássaros,
e o homem um intruso,
um ser ilógico
sem raízes nem asas.
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Hoje esse homem sou eu,
sem terra para pisar,
sem sombras para dormir,
sem frutos para comer,
sem flores para cheirar,
sem fontes para beber
- perseguido por todos os muros do mundo
numa paisagem de lagartixas.
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Hoje esse homem sou eu.
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O céu, ao menos, não tem muros.
E as aves não riscam fronteiras
nem põem vidros partidos nas nuvens.
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domingo

José Gomes Ferreira: AREIA: XXVII

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Entra, realidade, entra
com pés de névoa
na minha combustão do desalinho...
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Entrem, árvores.
Entrem, pedras.
Entrem, fragas.
Entrem, sóis.
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Entrem, entrem nesse cadinho de nuvens
onde tudo se transforma
em alma que começa...
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(...para amanhã ter a ilusão
de que o mundo é um sonho sem forma
a sair-me da cabeça.)
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José Gomes Ferreira: AREIA: XXXII

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Sei lá cantar
a ilusão
dos meus problemas
- sem algemas
no chão.
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Sei lá cantar
o que há em mim de sombra mais secreta
sem sentir o peso do planeta
no meu bandolin.
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Já não sou eu que canto
- mas o espanto
do homem em mim.
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