sábado

Mel do Melhor 14: LEONARD COHEN

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A décima quarta edição de o Mel do Melhor traz uma antologia de uma antologia. Trata-se de sete poemas de Filhos da Neve, seleta de poemas de Leonard Cohen traduzida por Jorge Souza Braga e Carlos Tê e publicada em Portugal pela editora Assírio & Alvim na coleção Rei Lagarto. Leonard dispensa apresentações. É realmente notável como ele consegue mesclar o domínio da canção com o domínio da poesia propriamente dita. Just enjoy.
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Leonard Cohen: A NEVE CAI

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A neve cai.
Há uma mulher nua no meu quarto.
Os olhos pousados no carpete cor de vinho.
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Tem dezoito anos.
E os seus cabelos são lisos.
Não fala o idioma de Montreal.
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Não quer se sentar.
Não parece ter a pele arrepiada.
Ficamos os dois a ouvir a tempestade.
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Acende depois um cigarro
no aquecedor a gás.
E deixa cair os seus cabelos longos para trás.
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sexta-feira

Leonard Cohen: ORAÇÃO PELO MESSIAS

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O seu sangue no meu braço é quente como um pássaro
o seu coração na minha mão pesado como chumbo
os seus olhos através dos meus brilham mais que o amor
oh manda-nos o corvo antes da pomba Senhor
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A sua vida na minha boca é menos que um homem
a sua morte no meu peito é mais pesada que pedra
os seus olhos através dos meus brilham mais que o amor
oh manda-nos o corvo antes da pomba Senhor
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Oh manda-nos o corvo antes da pomba Senhor
Oh canta apesar das algemas do fundo dessa prisão
os teus olhos através dos meus brilham mais que o amor
o teu sangue detém a morte nesta canção
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Oh canta apesar das algemas do fundo dessa prisão
os teus olhos através dos meus brilham mais que o amor
o teu coração na minha mão pesado como chumbo
o teu sangue no meu braço é quente como um pássaro
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Oh que rompa entre os teus ramos o ramo verde do amor
depois do corvo ter morrido em vez da pomba Senhor
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quinta-feira

Leonard Cohen

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O TUMOR CEREBRAL DE HITLER
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O tumor cerebral de Hitler assoma aos meus olhos
Goering derrete lingotes de ouro nas minhas entranhas
A minha maçã de adão faz saliência com a cabeça de Goebbels
É inútil dizer a um homem que é judeu
Com o teu beijo construo um quebra-luz
Confessa! Confessa!
.............é o que me estais pedindo
embora acrediteis que me estás dando tudo
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ADOLPH EICHMANN
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OLHOS ........................................... normais
CABELO ......................................... Normal
PESO .............................................. Médio
ESTATURA ................................... Mediana
SINAIS IDENTIFICADORES ........... Nenhum
DEDOS DAS MÃOS ......................... Dez
DEDOS DOS PÉS ............................. Dez
INTELIGÊNCIA ........................... Média
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Que esperavam?
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Garras?
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Incisivos desenvolvidos?
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Saliva verde?
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Loucura?
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quarta-feira

Leonard Cohen: O ESTADO DE MINHA GAVETA EM 28 DE NOVEMBRO DE 1968

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Poderá existir algo mais vazio
que a gaveta onde
costumavas guardar o teu ópio?
Algo como uma mulher de olhos negros
convertida em margarida vulgar
no meu belo armário de cozinha.
Como um nariz sem narinas
é a minha gaveta nua de madeira.
Como uma cesta sem ovos
ou uma lagoa sem tartarugas.
A minha mão explorou como um rato
essa gaveta
numa experiência labiríntica.
Leitor, posso afirmar-te com toda a segurança
que não existe gaveta mais vazia
em toda a cristandade!
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terça-feira

Leonard Cohen: O NOVO CHEFE

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Quando teve certeza de que seu pai tinha conseguido o contrato dos fornos, que o fumo que cobria a cidade, as nuvens cálidas como a sua pele eram obra de seu pai, sentiu-se livre do amor, o vazio que sentia ficou legalizado.
Higiênico como um chicote, o seu coração despojou-se dos alibis da devoção, livre como uma ponte derrubada por uma tempestade, inútil e puro como um despertador afogado, inspirou profundamente cheio de gratidão na atmosfera poluída e exclamou: O meu pai conseguiu o contrato dos fornos, ele amava a minha mãe e construía-lhe vivendas no campo.
Quando teve certeza de que seu pai tinha conseguido o contrato dos fornos, subiu a um monte de monóculos, sentou-se na corrente de ar de um cabelo, odiou com enorme naturalidade a chusma de inválidos, as suas mães, os seus maridos e as esposas, o sonho familiar das obrigações dignas.
Depois de descer a St. Claire Street a dançar realizou uma intervenção cirúrgica numa hospedaria. As janelas gotejavam como um congelador estragado. Do seu ódio desprendia-se uma brancura de sal sobre as calçadas. Não se salvou ninguém e sentiu-se feliz por ter possuído à luz da lua, no seu passado que pertencia já à história, cento e cinquenta mulheres.
Embriagou-se por fim, após ter passado anos a pisar o colar de margaridas da história, feito de beleza atrás de beleza. O seu pai tinha levantado nuvens em forma de coxa, que cheiravam a caixeiros-viajantes, ciganos e violonistas. Com a segurança e o prazer genital que lhe proporcionava aquela revelação, não pôde duvidar que fora o seu pai que conseguira o contrato dos fornos.
Bêbado por fim, abraçou-se a si mesmo. Bêbado, gelado e de estômago vazio. O céu claro, mas só para ele. Sentia-se livre para tremer, livre para odiar, livre para começar de novo.
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segunda-feira

Leonard Cohen: PARA O MEU VELHO LAYTON

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Ele oculta a sua dor sem dono
em frases de amor
da mesma maneira que um gato esconde as fezes
debaixo das pedras e aparece durante o dia,
arrogante, limpo, rápido, disposto
a caçar ou dormir ou a perecer de fome.
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A cidade recebe-o com lixo
que ele interpreta como um elogio
a sua musculatura. Cascas de laranja,
latas, tripas chovendo como papel de teletipo.
Durante algum tempo ele destruiu as suas noites
com a sua sombra refletida na janela da lua cheia
enquanto espiava a paz da gente vulgar.
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Uma vez invejou-os. Agora com um feliz
uivo saltava de monumento em monumento,
penetrava nos seus lugares mais sagrados, ébrio
de saber quão perto vivia dos mortos
debaixo da terra, ébrio de sentir o muito que queria
aos seus irmãos que ressonavam, os velhos e as crianças da cidade.
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Até que por fim, cansado comoTímon
do odor humano, ressentindo-se mesmo das suas próprias
pegadas no deserto, dedicou-se a caçar animais, e adornou-se
com braceletes de serpentes vivas e cizânias.
Enquanto a maré decia como uma manta,
ele dormia em cavidades das rochas um sono pesado
sem sonhos, a aragem brilhante do sol
como se fosse um laboratório automático
formando cristais no seu cabelo.
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domingo

Leonard Cohen: ENCONTRADO MAIS UMA VEZ IGNORANDO OSTENSIVAMENTE OS CISNES

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Encontrado mais uma vez ignorando ostensivamente os cisnes que apaixonam os espectadores das margens dos rios americanos; encontrado mais uma vez a caducar o negócio da china só porque o telefone tem uma correspondência mágica com minha bicha-solitária; encontrado mais uma vez a deixar a humanidade engalanada entregue ao perigo de um longo repouso oficial, enquanto os mármores aguardam preparados em históricos e deprimentes salões interiores; encontrado mais uma vez a humilhar o funcionário do banco numa disputa de olhos nos olhos, dogma da arte, vidas errantes de olhares fixos e de outros murmúrios teatrais de gênio; encontrado mais uma vez o objeto eleito da ansiedade celestial, como quem monta uma cilada a um eremita na floresta com visões de um parque de estacionamento superlotado; encontrado mais uma vez com camisolas a cheirar a naftalina, titulando filmes familiares, desenredando vitorianos aparelhos de pesca ao salmão, fanaticamente convencido que há um mundo numa ordem fraternal imediatamente ao virar a esquina; encontrado mais uma vez a fazer planos para o ano ideal solitário que espera por mim como um primeiro amor carnal num calendário de opções de terceira mão; encontrado mais uma vez como uma estrela de papel devorando o fio suspenso no ar sobre as mãos que me trazem de comer e falando com eloqüência sob influência astrológica; encontrado mais uma vez a vender a acessível inocência local enquanto no Pentágono a maldição de Tiffany pode por si só garantir o meu poder; encontrado mais uma vez confiando que os meus amigos foram criados no Paraíso e que não hão de fazer mal quando por fim eu estiver sem couraça e absolutamente silencioso; encontrado mais uma vez no princípio de todas as coisas, veterano de vários sacrifícios inúteis, profético mas não seminal, o purista para as massas do futuro; encontrado mais uma vez adoçando a vida que tinha abandonado, como um guarda do jardim zoológico despedido que atira furtivamente amendoins a elefantes públicos sodomizados; encontrado mais uma vez a exibir o arco-íris, o que prova que apenas tenho acesso às minhas necessidades mais urgentes; encontrado mais uma vez a limpar a minha língua de todas as possibilidades, de todas as possibilidades exceto a minha, a perfeita.
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