sábado

Mel do Melhor 17: Lau Siqueira




A décima sétima edição de O Mel do Melhor apresenta a poesia despojada de Lau Siqueira, retirada do livro Sem meias palavras, de 2002. Amador Ribeiro Neto escreveu uma ótima crítica ao livro, vale conferir. Imperdível também é a comunidade Lau Siqueira no Orkut, uma das maiores dedicadas a poetas contemporâneos brasileiros, onde tudo com e sobre o poeta acontece.

Lau Siqueira: Sem meias palavras


condição perene

 

 

      nas cheias

o rio comanda o espetáculo

 

e as margens são apenas 

degraus para o leito mais fundo

 

                nas secas

                o rio é a margem

 

 

 

 

razão

nenhuma

 

 

o que escrevo

é apenas parte

do que sinto

 

a outra parte

finjo que minto

 

         e acredito

 

 

 

as flores mallarmaicas

 

 

                  queria

                  num poema

             oferecer flores

 

      um jeito lógico

de não arrancá-las

da placidez silvestre

 

!               como as flores

da adivinha mallarmaica

"que nunca estão no buquê"

e cujo aroma experimentamos

nas planícies viageiras

                         do significado

 

                       a palavra pétala

entre húmus e caules de linguagem

embriagando a dor extraída

deste pólen com o qual enlouqueço

as abelhas africanas

                             do esquecimento

 

             mas tudo que tenho

são essas mãos vazias e uma

            paixão petrarquiana

de insuportável hálito

                          modernista

 

 

 

deus

  

fingiu que estava
criando o mundo 

trabalhou seis dias
oito horas em dois turnos
salário de cento e oitenta
                             pregos

ornamentou noites
          criou nuvens
                 e ventos

do barro fez a criatura

num sopro
o inventário das paisagens 

uma vez pronta a maquete
                       exonerou-se

                        e ficou mudo

hoje
         dies dominicu
reaparece com trezentas
mil faces midiáticas 

(dizem que vive em tudo)

 

 

o galo

 

 

                                        o silêncio

com suas equações

              de estrelas

abre os portais

da madrugada

 

sob os olhos atentos

               do infinito

                                um quarto de lua

                                empresta a partitura

                                       ao galo

 

 

 

 

a pele

do motivo

 

 

a visão nua

de tuas omoplatas

 

      tão iguais

      a tantas

 

esconde alguns rebanhos

da minha tristeza

 

 

 

 

grafite

 

 

morrer é quase

um imprevisto

 

morro sempre

quando penso

que não existo