segunda-feira

O Mel do Melhor 20: Eugénio de Andrade





A vigésima edição de O Mel do Melhor apresenta a rica prosa poética de Eugênio de Andrade, falecido em junho de 2005. São sete textos do livro Memória do outro rio (1976-7). São águas de um dos maiores poetas de todos os tempos, de fonte e origem.


Dizem que você é muito duro nos seus juízos sobre os poetas jovens. É verdade?

Sim, é exacto. A juventude não precisa de piedade, mas de verdade. Há muito jovem que me pede ajuda onde não há ajuda possível, pois ninguém pode viver por eles a sua própria vida, remontar às fontes do ser. Porque a poesia é a perpétua procura dessas águas. Quando não é isso, é uma inútil cantilena com que se embalam as horas, com que alguns espíritos superficiais iludem a vida. Num tempo degradado como o nosso, todas as fontes estão ocultas. A tarefa do poeta é desocultá-las. Tudo o que nos saia das mãos sem este sabor original são só palavras a mascarar
a palavra, miséria que impede até de ouvir a magnífica e alta música do silêncio.

Eugénio de Andrade: MEMÓRIA DOUTRO RIO


Girassóis

.....Adormecer sobre a profusão dos girassóis, pensando nos flancos menos expostos de outro corpo. Várias foram as negligências do olhar, bem pouco curioso para outra coisa que não fosse a nudez da terra, às vezes muito jovem, outras, fatigada. O desejo, só o desejo impede a perversão da alegria. E destas sílabas.



Enquanto escrevia

.....Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com esses antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos de outro corpo estendido ao lado? Já não me lembro; passava os dias a dormir à sombra daquela árvore; era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede.



Em forma de estrela

.....Vi-te levantar os braços para a culminação da noite, beber em silêncio nas águas da demência sem poder acudir-te, sem conseguir inclinar-te para o esplendor das areias de junho, perguntando-me para que servem as mãos se até do jeito de partir o pão se haviam esquecido, ou de governar o arado, ou de erguer uma criança para a oferecer ao sol, as árvores em roda curiosamente dispostas em forma de estrela.



Do outro lado

.....Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer outra coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direção das nascentes.



Retrato de mulher

.....Sobre o seu rosto não fora só o tempo que passara, também as cabras ali pisaram fundo. Era difícil, era impossível distingui-la da própria terra: velha, seca, esboroando-se à passagem do vento. Portuguesa, de tão pobre.



Insónia

.....Apaguei outra vez a lâmpada, procurei agarrar os fios do sono, mas o que se aproximou foi um camponês muito jovem, que atravessou a noite para saber o que é que me doía.
.....- Meu nome é Guérassim.
.....Devia responder-lhe que o conhecia bem, mas limitei-me a perguntar-lhe porque deixara a casa de Ivan Ilich.
.....- Agora és tu que precisas de mim. Que é que tens?
.....O meu mal é sem remédio. O que eu queria era água, água. Água de quatro rios, sobre a garganta. Para adormecer. Com o sol na boca.



Parágrafos da sede

.....Animal do deserto, o sexo. Expulso da alegria. Que procura ainda, no território da sede? Outra boca, mordendo a poeira? A língua do sol, entre a cegueira e o cio? A semente do linho?
.....Animal do deserto, marrando contra o muro.