sábado

Mel do Melhor 18: Marin Sorescu




A décima oitava edição de O Mel do Melhor traz poemas do livro Razão e Coração, do poeta romeno Marin Sorescu, traduzidos por Luciano Maia e publicados pela editora O Giordano em 1995. Trata-se do único documento de Marin Sorescu no Brasil. Uma preciosidade, uma jóia de poeta. Como de praxe, as pérolas continuam na comunidade Marin Sorescu no Orkut.

sexta-feira

Marin Sorescu: Razão e Coração

CARGA


Um livro pequeno:
não levei comigo
mais do que um livrinho fino,
assim como uma folha,
assim como uma vida humana.


Pensei que me fosse doer a espinha,
que me doesse o nome
que irá carregá-lo.



BOLAS E ARCOS


O malabarista de circo é meu pai.
Foi chamado urgente para a noite
e deixou-me ficar
no seu lugar.


Tudo o que vês à tua volta
são apenas bolas e arcos,
disse-me ele, tem sempre na mente:
bolas e arcos.


As árvores são arcos verdes,
é preciso faze-los girar com a mão rapidamente,
para que não percam de uma vez
todas as folhas.


As nuvens são arcos azuis,
fá-los girar com a ponta do pé
e com um movimento do coração.
As mulheres também são arcos,
é preciso saber alterná-los
entre nuvens e fumaça.


Quanto às bolas,
toma cuidado: não percas a vermelha,
porque ficas às escuras,
e não lances longe demais a bola negra
à qual toda nossa estirpe
está ligada por juramento.


O jogo é divertido,
domino como posso
o mundo de bolas e arcos.
Mas, olha, é muito tarde
e o malabarista pai não volta mais.



DE COSTAS


O relógio voltou as costas ao tempo.
Estava doente o relógio e pressentindo o fim.
Talvez tenha pensado
num paraíso de objetos que morrem,
onde os relógios se acertam sozinhos,
segundo o coração de Deus.
E os despertadores tocam dia e noite
a ressureição das estrelas.
Porém, o relógio viu com o ponteiro grande
que é absurdo
e morreu simples e definitivamente,
voltando as costas ao tempo.


Mas eu, a alma do falecido,
vou ficar ao seu lado
três dias,
para ver como continuam a crescer-lhe
o cabelo e as unhas.



A RODA


Habito numa roda.
Dou-me conta disso
segundo as árvores.
Sempre que olho pela janela
vejo-as:
quando, as folhas no céu,
quando, as folhas na terra.


E segundo os pássaros,
que voam
com uma asa para o sul
e com uma asa para o norte.


E segundo o sol,
que me nasce
hoje no olho esquerdo,
amanhã no direito.


E segundo eu,
que ora sou,
ora não sou mais.



A CONCHA


Escondi-me numa concha, no fundo do mar,
mas esqueci-me em qual.


Cotidianamente desço as profundezas
e côo o mar por entre os dedos
a ver se dou por mim.


Às vezes penso
que fui comido por um peixe gigante
e eu o procuro por toda a parte
para o ajudar a engolir-me por completo.


O fundo do mar me atrai e me espanta,
com seus milhões de conchas semelhantes.


Ó gente, eu estou numa delas
mas não sei em qual.


Quantas vezes fui diretamente a uma concha
dizendo: "Este sou eu".
Quando abria a concha
estava vazia.



EIS AÍ...


Eis aí, as coisas
são cortadas ao meio:
elas dum lado,
do outro lado o seu nome.


Há um vasto espaço entre elas,
lugar de corridas,
de vida.


Olha, tu és cortado ao meio:
dum lado tu,
do outro lado o teu nome.


Não sentes às vezes, talvez em sonho,
talvez ao pé do sonho,
que sobre a tua fronte
se sobrepõem outros pensamentos,
sobre as tuas mãos
outras mãos?


Alguém te compreendeu por um instante,
fazendo o teu nome
passar através do teu corpo,
sonoro e doloroso,
como o badalo de bronze
pelo interior do sino.



BRINDE


Ergo este respingo de água,
à vossa saúde.
Ergo esta escama de peixe
e bebo-lhe a lágrima.