CARGA
Um livro pequeno:
não levei comigo
mais do que um livrinho fino,
assim como uma folha,
assim como uma vida humana.
Pensei que me fosse doer a espinha,
que me doesse o nome
que irá carregá-lo.
BOLAS E ARCOS
O malabarista de circo é meu pai.
Foi chamado urgente para a noite
e deixou-me ficar
no seu lugar.
Tudo o que vês à tua volta
são apenas bolas e arcos,
disse-me ele, tem sempre na mente:
bolas e arcos.
As árvores são arcos verdes,
é preciso faze-los girar com a mão rapidamente,
para que não percam de uma vez
todas as folhas.
As nuvens são arcos azuis,
fá-los girar com a ponta do pé
e com um movimento do coração.
As mulheres também são arcos,
é preciso saber alterná-los
entre nuvens e fumaça.
Quanto às bolas,
toma cuidado: não percas a vermelha,
porque ficas às escuras,
e não lances longe demais a bola negra
à qual toda nossa estirpe
está ligada por juramento.
O jogo é divertido,
domino como posso
o mundo de bolas e arcos.
Mas, olha, é muito tarde
e o malabarista pai não volta mais.
DE COSTAS
O relógio voltou as costas ao tempo.
Estava doente o relógio e pressentindo o fim.
Talvez tenha pensado
num paraíso de objetos que morrem,
onde os relógios se acertam sozinhos,
segundo o coração de Deus.
E os despertadores tocam dia e noite
a ressureição das estrelas.
Porém, o relógio viu com o ponteiro grande
que é absurdo
e morreu simples e definitivamente,
voltando as costas ao tempo.
Mas eu, a alma do falecido,
vou ficar ao seu lado
três dias,
para ver como continuam a crescer-lhe
o cabelo e as unhas.
A RODA
Habito numa roda.
Dou-me conta disso
segundo as árvores.
Sempre que olho pela janela
vejo-as:
quando, as folhas no céu,
quando, as folhas na terra.
E segundo os pássaros,
que voam
com uma asa para o sul
e com uma asa para o norte.
E segundo o sol,
que me nasce
hoje no olho esquerdo,
amanhã no direito.
E segundo eu,
que ora sou,
ora não sou mais.
A CONCHA
Escondi-me numa concha, no fundo do mar,
mas esqueci-me em qual.
Cotidianamente desço as profundezas
e côo o mar por entre os dedos
a ver se dou por mim.
Às vezes penso
que fui comido por um peixe gigante
e eu o procuro por toda a parte
para o ajudar a engolir-me por completo.
O fundo do mar me atrai e me espanta,
com seus milhões de conchas semelhantes.
Ó gente, eu estou numa delas
mas não sei em qual.
Quantas vezes fui diretamente a uma concha
dizendo: "Este sou eu".
Quando abria a concha
estava vazia.
EIS AÍ...
Eis aí, as coisas
são cortadas ao meio:
elas dum lado,
do outro lado o seu nome.
Há um vasto espaço entre elas,
lugar de corridas,
de vida.
Olha, tu és cortado ao meio:
dum lado tu,
do outro lado o teu nome.
Não sentes às vezes, talvez em sonho,
talvez ao pé do sonho,
que sobre a tua fronte
se sobrepõem outros pensamentos,
sobre as tuas mãos
outras mãos?
Alguém te compreendeu por um instante,
fazendo o teu nome
passar através do teu corpo,
sonoro e doloroso,
como o badalo de bronze
pelo interior do sino.
BRINDE
Ergo este respingo de água,
à vossa saúde.
Ergo esta escama de peixe
e bebo-lhe a lágrima.