sábado

COMEÇOU

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e o primeiro poeta a ser contemplado pelo MM é Waly Salomão. Isso porque a alcunha deste bloco é um título de um dos seus livros.
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Durante uma semana, postarei um poema por dia do livro Algaravias. A escolha deste livro não se deve apenas a ele ser o meu favorito do Sailormoon, mas também porque é o mais reconhecido, tendo ganho tanto o Prêmio Alphonsus Guimaraens da Biblioteca Nacional quanto o Jabuti.
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Curiosidade: em 1970, Waly foi preso por porte de maconha em SP e cumpriu pena no Carandiru. Período porém produtivo: "comecei a escrever numa casa de detenção, no início de 1970, em SP. Paradoxalmente, a casa de detenção foi o momento de libertação da minha capacidade de escrever".
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W.S.: CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY

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A memória é uma ilha de edição - um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

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Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.

Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?

O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
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A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.

Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.

Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,

para depositá-las?
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Antes que o amanhã desabe aqui,

ainda hoje será esquecido
o que traza marca d'água d'hoje.
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Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.
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Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.
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E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.
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Corrigindo:
......................o humano fado.
(1995)

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sexta-feira

Waly Salomão: CANTO DE SEREIA

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(Primeiro Movimento)
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Tapar os ouvidos com cera ou chumbo derretido.
Construir uma fortaleza de aço blindado em volta de si.
O próprio corpo produzir uma resina que feche os poros,
como o própolis faz nas fendas dos favos de mel.
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(Segundo Movimento)
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A flor de estufa
salta a cerca
para luzir no mangue.
E se empenha de fulano, sicrano e beltrano.
Sua vida atual reverbera vozes pretéritas,
adivinha vozes futuras.
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Sua obsessão:
Que Eco se transforme em Narciso,
Que Eco se metamorfoseie em fonte.
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quinta-feira

Waly Salomão: DESEJO & ECOLALIA

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- O que é que você quer ser quando crescer?
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- Poeta polifônico.
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quarta-feira

TAL QUAL VALERY (fragmento)

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um poema deve ser uma festa do intelecto.
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terça-feira

Waly Salomão: Câmara de Ecos

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Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha de fronteira se rompeu.
(1993)

segunda-feira

Waly Salomão: EU E OUTROS POEMAS

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Adeus clara vista para estrelas e sol.
Retirada da Laguna:
..........perda gradual de cabelos,
..................................................dentes,
..............................................................consoantes,
substantivos, verbos, sentenças, prefixos
e sufixos.
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A pugna imensa travada nas gengivas murchas
e recuadas.

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O verme será o herdeiro de excessos e tibiezas,
..........................expectativas e indiferenças.
O verme será o equalizador de otimismos
e pessimismos,
..........................iluminismos e trevas,
..........................ilustração e paródia.
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Os ossos descarnados e desfeita a potência
Que urdia uma clonagem do caniço pensante
de Pascal.

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Caído feito Lúcifer que não sonha mais
com a luz.

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Waly Salomão: MINHA ALEGRIA

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minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de um incêndio.
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(1995)
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domingo

A FÁBRICA DO POEMA

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sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.
sinédoques, catácreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:
...........sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

pois a questão chave é:
...........sob que máscara retornará?

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