sábado

Mel do Melhor 05: Walmir Ayala

O quinto favo da colméia do Mel do Melhor é Walmir Ayala. Serão apresentados poemas do livro Águas como espadas, 2o. lugar no Prêmio Bienal Nestlé de Literatura de 1982.

Quase tudo sobre este poeta grandiloqüente, vasto escritor, aqui.

Como de praxe: Comunidade Walmir Ayala no Orkut.

Se alguém tiver uma foto do grande, sabe o que fazer.
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Walmir Ayala: SOMBRA

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Basta uma sombra na clara luz do dia.
A lembrança de um morto,
uma voz que habitasse
o passado, a memória
de uma viagem breve
e tensa, como a vida.
Basta isso para cortar em dois
o fio da alegria. Então
o silêncio sufoca o assomo
do menor suspiro.
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Tristes são as horas sem saída,
as horas que como dedos ou pétalas se fecham
lentas e nítidas.
No entanto basta uma sombra na clara luz do dia
e as horas estremecem em sua carga
de desastres.
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sexta-feira

Walmir Ayala: LIMIAR

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Mata-me de sede com tua água envenenada,
com o sal da tua água que sobeja.
Mata-me de sede com tua concha transparente.
Socorre o meu cansaço em teu abismo
e me despenha.
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Pousa a brasa perpétua do teu dedo
em minha chaga.
Mata-me do consolo caridoso
do teu joelho calcinado.
És tudo o que temi para salvar-me.

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Walmir Ayala: SOLO

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Os que cantam, sem saber, estão juntos.
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Mas intentam sofridamente ouvir
sua própria e única voz.
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quinta-feira

Walmir Ayala: O INSTANTE

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Deitado de cara para o céu
vejo o sem fim.
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Sei que estou dardejado de ar,
deste ar contaminado de progressão e pânico.
O invisível me oprime o instante
e penso que poderei, morrendo, deixar de respirar.
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Ar, respir (ar) – inacabado
hausto
que se apóia num suspiro e recomeçacomo a rosa mecânica.

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Walmir Ayala: A PASSAGEM DO DIA

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Deixar passar o dia como o fio de uma linha
na fenda de uma agulha.
Um dia como a vida, um sol inacabado,
a cortina inocente de uma chuva serena,
um dia com punhais que passam na insensível
carne das ante-salas.
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Ante-salas da morte. Dias da eternidade.
E ficar sobre a pele
o passo da manhã deixando a lama fina de uma hora perdida.

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quarta-feira

Walmir Ayala: TATUAGEM

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Eu não sou um veículo eletrônico,
eu não sou uma golfada de sangue,
sou um assomo de carne,
uma explosão de ira.
Eu não sou uma película transmissora,
nem um écran, um zoom de aproximação,
nem sequer um microscópio.
Eu sou um sono tumultuado,
sou um sonho que me tatua.
A pele da minha alma tem árvore fantásticas
e saudades maternas, e monstros inconclusos,
abismos, ligações mais estabelecidas,
terrores que perfumam a máscara encoberta.
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Eu não sou um instrumento.
Sou a mão que age e o gesto
que consuma.
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Walmir Ayala: NARCISO

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Deus é o mais alto Narciso.
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Antes de tudo ser esboçado
na mínima hipótese da vida,
Deus já se amava e contemplava
no sem princípio do tempo.
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E à sua imagem e semelhança, como excelso
Narciso,talhou a criação.
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terça-feira

Walmir Ayala: DOMINGO

O domingo é um refúgio,
uma grande sala com candelabros bizarros
mas sem conforto.


É um relógio sem medo, uma cadeira sem encosto.


O azeite da vida começa sempre amanhã.
Olhamos o domingo como se fosse a máscara
dissimulada – atrás dela o punhal ou o mel.


Passeamos nos domingos como as feras em suas jaulas.
Tentamos perceber o grande acontecimento que não chega,
porque até os mortos, geralmente, deitam-se ontem
em seus leitos acolchoados.


O domingo é um touro sozinho numa arena.

Walmir Ayala: O AGONIZANTE

Um homem, colado à insônia do seu grito,
atinge a noite,
a dúbia noite da morte.


Sob o lenço, que rosto
agora abstrato
empedra o lábio antes banhado
no azeite do gemido.


Crivava a noite, o homem,
de um brado escuro
e denunciador.
Agora,
sereno e imbatível, só nas lágrimas
do filho é que ainda punge.

segunda-feira

Walmir Ayala: PASSEIO


Passeio com meu filho pelo mundo
e é pouco para amá-lo este percurso.
Toco seus olhos de cristal escuro
e ele me vê robô, cavalo, urso.
Ele me vê raiz, me desafia,
briga e ama num elo conseqüente
com tudo o que é real, e me anuncia.


Passeio com meu filho à luz do dia,
e a luz fecunda a noite que nos une
num sonho latejante de silêncio.
Concentro-me de amá-lo como a urna
guarda a alucinação de seu perfume,
e penso, e piso a terra, restituo
em dom de amar a amarga antecedência
do filho que eu não fui e que construo.

Walmir Ayala: JANEIRO

Janeiro desnastra os arrozais,
o fumo é desfolhado
e a larva ameaça o algodoal.


A mão do homem corrige todos os acasos.


Janeiro vê a altura viva das mudas
nos viveiros.
É tempo ainda de semear.


As frutas submetem-se aos enxertos, promissoras.
Reverdecer é simples como a luz.

domingo

Walmir Ayala: PROJETO

Quem antes de mim marcou com sua forma este desenho,
este plano de vida
em que respiro
e que maravilhoso dimensiono?


Quem
pisou a terra que hoje me baseia,
e cuja marca o vento cegamente
baniu?
Sou esse? Aquele? O outro?


Quem me sucederá neste meu feudo
de transitória posse? Filho excuso
que desconheço e que virá na sombra
reconstruir o tempo que respiro.


Quem fala em mim, além dos meus receios,
da minha consciência intimidada?
Quem me move a cobrir, tomar de assalto
o chão da vida? – senão o proprietário
que a morte com presteza ludibria?


De olhos cerrados tanjo o ar presente
e despetalo dedos abdicados.
De olhos abertos marco a luz com tênue
risco de compaixão.
Dentro do túnel
já se esboça um gemido, e me completa.