sábado

Mel do Melhor 16: Saint-John Perse




A décima sexta edição de O Mel do Melhor apresenta poemas do livro Elogios (1908), da autoria do justíssimo e indiscutível prêmio Nobel de Literatura de 1960, Saint-John Perse, com tradução de Darcy Damasceno. Incrível como um dos maiores poetas de todos os tempos já apresentava uma linguagem imensamente despojada ainda no primeiro decênio do século XX, dezenas de anos antes das suas obras principais.

Muito mais sobre a obra do autor, incluindo discussões de tradução (com todos os méritos a Bruno Palma, tradutor de Amers e Anabase), pode ser encontrado na comunidade Saint-John Perse no Orkut.

Saint-John Perse: ELOGIOS

I

As carnes assam ao vento, os molhos se compõem
e o fumo remonta os caminhos ao vivo e alcança quem andava.
Então o sonhador de bochechas encardidas
se desprende
de um velho estriado de violências, de astúcias e esplendores,
e ornado de suores, para o cheiro da carne
desce
qual mulher que arrasta: seus panos, toda sua roupa e seus cabelos desfeitos.


XII

Temos um clero, temos cal.
Vejo brilharem os fogos de um acampamento de soldadores.
- Os mortos do cataclisma, como animais espulgados, nessas caixas de zinco levadas pelos Notáveis e que voltam da Prefeitura pela rua principal encharcada de água verde (ó estandartes lavrados como dorsos de lagartas, e uma infância em negos suspensa de borlas de ouro!)
são empilhados, por um momento, na praça coberta do Mercado:
onde de pé
e vivo
e vestido como velho saco rescendente a arroz,
um negro cujo pêlo é da lã de carneiro negro cresce como um profeta que vai gritar numa concha - enquanto o céu pedrento anuncia para esta noite
novo tremor de terra.


XV

Infância, meu amor, amei também bastante a noite: é hora de sair.
Nossas amas entraram nas corolas das roupas... e colados às persianas, sob nossas tranças geladas, vimos
como lisas, como nuas, elas levantavam no alto do braço o anel mole da saia.
Nossas mães vão descer, perfumadas com a erva-de-Madame-Lalie... São belos seus pescoços. Vai adiante e proclama - Minha mãe é a mais bela! - E eis que ouço
os panos engomados
que arrastam pelos quartos um doce ruído de trovão... E a Casa? a Casa?... saímos dela!
O velhote mesmo me invejaria um par de matracas
e o zunir com as mãos como um cipó de guizos, o bonduque ou a mucuna.
Aqueles que são velhos na terra puxam uma cadeira para o pátio, bebem ponches cor de pus.


XVI

Aqueles que são velhos na terra levantam-se mais cedo
para abrir o postigo e olhar o céu, o mar que muda de cor
e as ilhas, dizendo: o dia será belo, a se julgar por essa madrugada.

E logo é dia! e o zinco dos tetos se ilumina no transe, e a baía está entregue ao mal-estar, e o céu ao humor, e o Contista se lança à vigília.

O mar, entre as ilhas, é rosa de luxúria; seu prazer é matéria de debate, tivemo-lo por um lote de braceletes de cobre!

Crianças correm às margens! cavalos correm às margens! um milhão de crianças levando suas pestanas como umbelas... e o nadador

tem uma perna em água morna mas a outra pesa numa corrente fresca; e as gonfrenas, os ramis,
a acalifa de flores verdes e essas pílias tufadas que são a barba dos velhos muros
enlouquecem nos telhados, à beira das calhas,

pois um vento, o mais fresco do ano, se levanta nas bacias de ilhas que azulam,
e soltando-se até esses banquinhos rasos, nossas casas, desliza para o seio do velhote
pela abra de pano até o lugar cheio de crina entre os dois mamilos.

E o dia começou, o mundo não é tão velho que subitamente não ria...

***

É então que o cheiro de café vem pela escada.


XVII

"Quando acabares de me pentear, acabarei de te odiar."
A criança quer que a penteiem na soleira da porta.
"Não puxes assim o meu cabelo. Já basta que seja preciso tocarem em mim. Quando me houveres penteado, eu te terei odiado."
Enquanto isso a sabedoria do dia toma a forma de uma bela árvore
e a árvore balançada
que perde uma porção de pássaros,
nas lagunas do céu escama um verde tão belo que nada existe mais verde do que o percevejo de água.
"Não puxes tão longe meus cabelos..."


XVIII

Agora deixai-me, vou sozinho.
Sairei, pois tenho o que fazer: um inseto me espera para tratar. Alegro-me
com o grande olho facetado: anguloso, imprevisto, qual o fruto do cipreste.
Ou tenho uma aliança com as pedras azul-estriadas: assim, deixai-me, também,
sentado na amizade de meus joelhos.