Dora Ferreira da Silva: Hídrias
ÓRFICA
Não me destruas, poema,
enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.
Não me lapidem, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.
Não caias sobre mim, que te ergo,
ferindo cordas duras,
pedindo o não-perdido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.
Não me tentes, Palavra,
além do que serás
num horizonte de vésperas.
ÁRTEMIS DE ÉFESO
A bela face parece negar o corpo informe
de múltiplos seios que nutrem a multidão de seres:
leões e morcegos, pâmpanos e flores, uvas e pinhas
adornam-lhe o pescoço. Semente longa,
o talhe corpóreo, barco de nascimento e morte.
Por que temer, se as mãos se estendem, doadoras,
não por amor de um só, mas da procissão
das formas? Retraem-se seios, quando à morte entrega
e ao húmus, plantas, homens e feras.
Mãe luminosa, mãe sombria, mistério que tudo abriga,
sê propícia ao trigo do meu canto.
DIONISOS DENDRITES
Seu olhar verde penetra a Noite entre tochas acesas
Ramos nascem de seu peito
Pés percutem a pedra enegrecida
Cantos ecoam tambores gritos mantos desatados.
Acorre o vento ao círculo demente
O vinho espuma nas taças incendiadas.
Acena o deus ao bando: Mar de alvos braços
Seios rompendo as túnicas gargantas dilatadas
E o vaticínio do tumulto à Noite -
Chegada do inverno aos lares
Fim de guerra em campos estrangeiros.
As bocas mordem colos e flancos desnudados:
À sombra mergulham faces convulsivas
Corpos se avizinham à vida fria dos valados
Trêmulas tíades presas ao peito de Dionisos trácio,
Sussura a noite e os risos de ébrios dançarinos
Mergulham no vórtice da festa consagrada.
E quando o sol o ingênuo olhar acende
Um secreto murmúrio ata num só feixe
O louro trigo nascido das encostas.
DELFOS
Aquece o Sol as clareiras do ar,
atirador de dardos súbitos.
Apolo foi chamado e usurpou em Delfos o trono das Sibilas.
Sobre a mancha de trevas pousou a trípode de luz
e mais longe soprou os vaticínios.
Muitos morreram de luz tão clara, incendiando o coração.
O ar brincou na flauta abandonada pela deusa sábia
e a música invadiu águas turbulentas:
rápidas mensagens riscou o vento nas Fedríades,
pedras róseas que se chamaram as Luminosas.
À noite, dormem no bosque templos de ossatura branca,
vértebras pousadas entre oliveiras.
Três colunas se enlaçam, sobrevivas,
na antiga ronda do templo,
fechado o círculo dos ritos funerários.
As cigarras se atrevem e os jumentos
a louvar a montanha, os vales e deuses soterrados.
A Terra acorda às vezes e suplica que tanta luz
não lhe fira a carne, queimando arbustos e a pedra crua.
KÓRE (I)
Por que sempre voltas mendiga
com braceletes de ouro e súplices olhos
de violeta?
Tuas sandálias te trazem nos andrajos
de púrpura. É primavera.
O vento se debate
nos arbustos brilhantes.
O jardim te espelha, pétalas refletem
teu sorriso
e se ofuscam.
Voltas. Sempre de novo és tu
e me assedias:
vaso antigo, cítara,
coluna entre o arvoredo.
Queres cantar comigo na relva da manhã?
Conheço tuas pálpebras, os anéis do teu cabelo,
a curva de teu colo. Sem te ouvir
sei como cantas.
Voltaste: é primavera.
O jardim se adorna
com jóias do teu cofre
pérolas frementes.
Forças, amiga, demasiado as cordas
do meu canto.
Revela-se em mim tua fragilidade.
Demora, se puderes, e com o orvalho de teus colares claros
guarda meu pranto
quando ainda mais uma vez
te fores.
KÓRE (II)
Em ilha Bela afloraste
disfarçada em rocha:
os olhos - antros de mariscos.
Olhavas o céu, narinas frementes
a boca emitindo antiga sílaba:
início do cântico a Argíon
primeiro navegante.
Virgem das profundezas
a coma em serpes
à espera de que ouça o lamento e o devolva
à amplidão do mar.
Vieste
e navegas com o tempo escultor de lápides.
Vieste
e vigias o rumo das nuvens; face gotejante
cotovelos fincados no mar
os joelhos pedras da ilha.
Teu corpo: ânfora coroada de espumas
em núpcias com o Mar.
Em câmaras fechadas
confabula-se tua derradeira história.
Que outra serás?
Que porto o teu?
Piedosamente quisera cerrar as pálpebras
desse olhar imenso
dessa busca semelhante à febre dos tesouros,
se pudesse. Mas teu olhar me contém
aos pássaros da ilha
e ao mundo adormecido de sáurios e peixes.
Entre vivos e mortos
segues à proa de navios estranhos
no múrmure mar.
2 Comments:
mel do melhor faz juz ao nome que tem...
é a obra completa? não estou achando na internet
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