sábado

Rodrigo Petronio: Pedra de Luz I



NO SENTIDO DA TERRA


I

Se eu abro meu pulso para uma estrela e a chuva em coro
[ vem arar meu dorso.
Se procedo líquido da boca da madeira e por ela canto o
[ canto circular de um morto.
Se adentro sem pegadas o teu corpo de vidro e me
[ comovo com a floração das teclas.
O pólen líquido fecunda a primavera. Anjo volátil. Rosto
[ vascular talhado em pedra.
Ânfora sem coração que acolhe em si o que Deus recusa e
[ a eternidade congela.
Falo do farol. Falo de um dardo de folha. Que desviando
[ do alvo encontra a meta.
O rio regressa. A ave regressa. A musculatura lisa da lua
[ trama flores convexas.
O campo revolve a ordem divina. Analfabeta. A
[ ignorância nos protege de sua luz que cega.
Não sou o guardião dessa terra anônima. Apenas nomeio
[ o que a mão não toca.
Encarno o que a lava não sonha. E cumpro as estações
[ que nosso olhar nos veda.


II

O que eclode entre a voz da terra e os gravetos são asas.
Não a madrugada. O óleo que lubrifica o sono e inunda
[ a sala.
O avião risca meu ouvido. Espanta carros e cabras.
Mais real que esta faca com que pico o vegetal flexível.
[ Ainda vivo.
Uma estrela menor foi bebida pelo olho de fogo da
[ mandrágora.
A rua pulsa seu ritmo cotidiano. Abro a janela que dá
[ para a praia.
E não vejo o rosto do homem esculpido pelas formigas.
A fuligem dos dentes tritura o azulejo das casas.
A baía se embrenha no arquipélago das águas.
Ainda não é meio-dia. O pão não veio. O leite não veio.
Não veio a morte vergar seus braços de sangue em meu peito.
A estrela brilha. Há uma árvore enterrada em seu seio.
Um tapete de rios se trama em seu cheiro.
Troncos de cobalto percorrem o interior da mulher
[ que dorme.
Veleiros estouram a placenta do mar. Ela olha.
Todo nascimento é obra de um deus que perdeu
[ seu centro.
Compartilho o feno ancestral desta paisagem.
Transpiro o álcool antiqüíssimo de seus veios.
E quando atravesso o rosto de um diamante
Todo o mundo se recolhe ao seu diadema negro.


III

É no sentido da terra que temos que cavar
[ um mundo novo.
Na fenda da artéria. No espaço. No ar. Abismo
[ entre a veia e a vértebra. Entre o sexo e o espelho.
No rio de sangue que corre lúcido entre as pedras.
O sol do sono. Estômago entre ciprestes. A mandíbula
[ das árvores.
Tritura feliz mais um enxame de séculos e insetos.
É no sentido do poço. No mergulho em um corpo
[ sem verbo.
Abraço a sensação. Este copo. Este lago que levo
[ aos lábios magnéticos.
As ruas se prolongam dos meus nervos. O campo
[ desperta dos meus poros no inverno.
Uno-me ao que toco. Ao que sinto. Ao que falo. A saliva
[ animal é mais nobre que a prece.
Não há conceito. Túmulo de ar. Toda a filosofia morre
[ em quem a escreve.
Deuses precários. Palavras cultas que ocultam o retorno
[ ao barro. Não explicam a imundície.
Não explicam a bala que enfio na cabeça em homenagem
[ aos vermes.
Tranço folhas na boca da fonte. Realizo o velho percurso
[ dos homens sem nome.
A velha trajetória dos astros sobre a pele. Não
[ a recuperação. Não a ressurreição.
Que mata mais do que transfigura. Que consome mais
[ do que conserva.
Que duplica a carne. Prolifera a morte. Em série.
Mas o instante cristalino em fuga. Uma nova paisagem
[ se desprende de minha língua em delta.
No sentido da terra a salvação é leve. Não os dentes
[ de fuligem.
Não a voz mouca da argila que range contra um muro
[ de sebes. Não projeto um mundo fora do mundo.
Apenas rumo para o deus viscoso. Ao vazio da lua sou
[ enfim entregue.
Não o que está fora do tempo. A eternidade e sua
[ engenharia de papel sem pele.
Não o espelho. A consciência. A merda abstrata que
[ a mente segrega.
E não expele. Mas o primeiro silêncio. Inocência cega.
[ Núpcias vegetais do que somente adere.


IV

Abro as folhas das mãos em leque. O dedo fende o mar
[ que se ergue.
Algas além da praia. Corpo muscular da erva celeste
[ que o vento demarca.
Canto a árvore imersa na sombra. E transpiro suas aves
[ em uma revoada de hélices.
Tenho pena das flores que rebentam suas estrelas. Campos
[ de vitiligo. O disco da noite doura a omoplata dos bichos.
Não renego o que a primavera quis em seu sono
[ nem o que a alma dormindo persegue.
Todo conceito se quebra. Membrana de um palácio liso.
[ Narinas de neve sorvem as anêmonas de teu vestido.
Mas não. A glória não vale um único instante vivo.
[ Toda a miséria é memória.
Do que não pode mais ser temido ou adiado ou delido.
[ Resta essa fresta. O oco entre uma palavra e outra.
O hiato entre o mundo e a boca.
A mão simples. Leque de células que levo aos lábios. A ostra
[ que sorvo ao ritmo das pétalas. Crustáceos de um poço.
É na luz mais tranqüila que os lampiões queimam
[ a substância interna dos barcos.
O enxofre se desprende de meus cabelos. Cria nódoas
[ na praia e sargaços. Olhos que eclodem.
Chapéus em uma esquina de flores. Homens trajando maio.
O rosto do mistério é pobre. Dentes pretos e brancos.
[ Pingentes de zinco que a morte guarda em seus cofres.
Meus dedos tocam levemente o tecido das horas.
[ As folhas são mãos. Outono que encarde no galho
[ dos poros e não revigora.
Tanjo este pulso. A pedra das águas. O cone do mar.
[ Rio sem curso. Curvatura lunar. Mais uma baía na pinça do ar.
Amanhã. Talvez serei sopro. Onda submersa na mecânica
[ do todo.
Fibra vegetal. Sem estória. Tiro na noite de um rosto.
[ Mergulho no ouro da argila que molda esta pátria.
Nunca renascerei. Além das cinzas. Costuro o horizonte.
[ Crinas e patas borrifam sua tinta.
Dorso de linfa. O cavalo se despe de minha forma
[ precária. Brota do fruto. Molda-me em magma.
Rasga sua pele. Depõe minha máscara. Irrigo os arbustos.
[ O grão da fibra. O dique da estrela. A morte clara.
Seu infinito percurso. A ave suicida divide a praia.
[ Suave crepúsculo de uma navalha.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Carlos, no que pese tua opinião, achei o Rodrigo muito "prosa"... não senti vibração... mas aí tá o risco. Abraços...

25/3/06 17:37  
Anonymous Anônimo said...

Belos poemas, Rodrigo! Serei um leitor fiel, pode ter certeza. Onde encontro o seu livro?
Antonio Naud Júnior

27/3/06 19:45  

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