sábado

Rodrigo Petronio: Pedra de Luz II

MANHÃ NEGRA, AÇÚCAR, BEBO O ORVALHO DE UM ROSTO

 

Este açúcar negro que despejo em uma manhã de agosto

É o suor de uma face sulcada pela selva.

Diluo lentamente a sua carne no café que exala

O sangue macio, a menstruação de luz, a primavera,

A pele perfumada, o hálito da boca em brasa,

Sua resina que se granula sob a pálpebra da lua,

No seu fundo se deposita e ainda se conserva.

A arquitetura porosa dos ossos se traduz em um só gosto.

As fibras da língua e a saliva se preparam para a flor

Ceifada do todo e, despicienda, retida entre as mãos, em seu aborto.

Imolo a sua doçura no pavilhão da xícara, e ele,

Prestes a mergulhar em mim e em uma só carícia cega

Povoar-me os sonhos e rechear-me o interior de cada célula.

Dissolvo-o vagarosamente nos giros da moenda.

O aroma se desprende e enche toda a sala:

Mão diáfana com sua linha feita a faca,

Costas estriadas em arabesco como um cesto de vime.

Pausado, levo a emulsão aos lábios e desfruto

A repetição de mais um ritual civilizado

Como quem em plena luz comete um crime.

 


RIO ESPESSO, SOL, CORAL DE ESTÁTUAS

 

I

 

Também o sangue é um rio espesso,

Vértebra acesa no começo da lua,

Por mais que o sol negro recomponha toda a flor

Ao roteiro do néctar que nele circula,

Sempre resta um campo inaugural, intocado,

Sob o fremir dos ossos do deserto.

 

Salvo a seiva, mais real que o fruto que a tem sonhado,

Névoa que emoldura o infinito

E nele assaz recorta um rosto duplo,

Circulação do horizonte em outra teia,

Tela que lhe devolve à origem de seu curso,

Avesso da alma ou carne imortal que lhe cavalga o dorso,

Nada foge à matéria e a seu imperativo:

Trama de pão que em si renega o trigo.

E quanto mais enaltecemos o pólen negativo

Que refaz em toda ave o próprio vôo,

Mais distante os passos seguem

Da meta de luz migrante do sol posto.

Alquimia, rota nômade do linho em cada artéria,

A linfa da flor que se desprende em delta

E me percorre as veias e me desperta a pele

Com a extinção feliz de cada pétala,

Sob o peso da mão de uma criança

Celebra a afirmação da morte enfim liberta.

 

Assim padeço da concordância plena, além da treva,

Assente em tudo o que a eternidade molda

E devedor de tudo o que a carne abraça e zela

Ao se deitar no crepúsculo de um corpo,

Tal como esta flor, reticente, sempiterna,

Somente ao se fechar em si de si desperta.

 

II

 

Os dorsos de pedra não têm autor.

Foram esculpidos pela maré do sangue

Que produz a veia com o efeito de seu vôo.

As vagas se renovam, contra a vontade da pele.

A transpiração das estátuas adere

Ao ar e ao enxofre calcário do suor dos mortos,

Motor de água invisível que move o globo

E na mecânica de fios que movimenta as éguas

E faz a engrenagem do ar se recompor

À fina fatura de músculos que transpiram a selva.

O giro das folhas não tem dono.

A camisa fatigada de se estufar com o corpo.

As estátuas não têm origem, autoria,

Nome que se rubrique em suas células,

Cálculo ou rim, autógrafo, espádua, anca, dorso.

São filhas do oceano lento que aniquila,

Fulmina os vivos e escalavra em suas pedras o meu rosto.

Mar que não refaz as algas que decifra.

Leva para sempre o que não for brilho e adorno.

Cospe a essência, suas fibras, musculatura, osso.

 

 

III

 

Meu corpo é tudo o que tenho.

Por isso sempre digo: corpo.

Essa precariedade que funda meu reino

E sem a qual não me comovo

Com a morte das estrelas em seu sorvedouro.

Um intestino, um copo de membros,

Algumas poucas linhas delimitam um rosto.

Essa pobreza é tudo que tenho.

Museu de músculos verdes, vasculares,

Veias, peixes que respiram  no pulmão das casas,

Esse incêndio provisório que carrego pelas ruas,

Cão diário que se leva a esmo, sem dono.

Sem vergonha, me exponho:

Édito, precário, claro, tangível.

Braço, perna, clavícula e tronco com que assomo

À janela dos vivos e como sua comida e bebo sua bebida.

Como num sonho. 

 

Este sol vermelho: é tudo o que tenho.

As sílabas procriam a ramagem do vento, seus cabelos,

A palavra, sua irradiação, suas cicatrizes,

A ferida amável que não se resolve em alma.

É isso. Tudo o que tenho: corpo.

O declive onde a consciência se abisma e se apaga.

Depois nada.